sábado, 14 de fevereiro de 2009

Reencontro

Os planos de comprar um carro sempre foram para mim meramente práticos: acordar mais tarde, chegar no horário - nem sempre! -, sair na hora em que me desse na cabeça e para onde quisesse ir. Eu poderia viajar! Ir a Pirenópolis, Brasília, Marabá, Porto Alegre! Bastava tempo e alguma grana (pouca, nunca precisei de muita) e lá estaria eu na estrada.

Em novembro de 2007, reuni toda a grana que tinha (pouca, afinal nunca precisei de muita) e, enfim, fui colocar o plano em prática, após nove longos anos acordando mais tarde, enfrentando o rush das superlotações e tentando chegar na hora. Àquela altura, meu pai já havia me feito desistir de comprar um modelo na cor vermelha - "É carro de playboy!" (será?) , "Dá azar!" (não diga!), "Vão riscar todinho um dia!" (acertou, pai!).

O vendedor, o Nilton - o carro saiu baratíssimo para ele, que até hoje acessa pelo menos dois jornais com as minhas senhas - não foi nada otimista: vendas em alta, o sonho do Paliozinho só viria depois de 40 dias de espera, acordando mais tarde, tentando chegar na hora, etc., etc. O martírio só seria evitado seu eu topasse levar o único carro disponível no pátio naquele dia, "é levar agora ou esperar".

Foi amor à primeira vista. No pátio da concessária estava o dito único à minha espera: o Paliozinho dos sonhos, 1.0, sem direção, sem ar-condicionado (pra que, eu pensei, sem lembrar que o primeiro conforto gera o desejo do segundo e do terceiro) e VERMELHO. Poucos dias depois, estava eu no meu carango vermelho, ouvindo "Nas curvas da estrada de Santos" na voz de Elis (Obrigado pelo CD, Alisson!), a todo volume.

E é aí que começa a jornada do reencontro. Aprender a dirigir foi o grande reencontro comigo mesmo. Começou com a auto-escola, que resolvi encarar como parte da terapia para superar uma grande perda daquele ano de 2007. Ao volante do Vermêi (nome caipira dado por mamãe), eu percebi que eu havia me deixado. No Vermêi, escutei "Bem que se quis" e me recordei da grande admiração perdida por mim mesmo. Voltei aos tempos da escola, às ladeirinhas charmosas do Jônathas Athias, na pontinha das quais eu me sentava só para ler Machado. Alencar. Augusto dos Anjos. Como era bom!

Onde eu havia me deixado? E por que? Essa passou a ser pergunta recorrente no controle do Vermêi. Dirigir foi, então, como retomar o rumo da minha própria vida. Tomar o leme nas mãos e enfrentar as ondas gigantes da vida real, dos desejos, das frustrações, dos medos. Um dos medos que lutei, então, para superar foi o de avião. E o contornei no dia em que percebi que vale sempre correr o risco de voar para poder ver o mundo lá de cima. Agora, é como se cair não fosse nada comparado à sensação gostosa do fim dos sacolejos de uma turbulência, como se cair não fosse nada comparado à visão das nuvens brancas pairando sob a curva da Terra.

Eu tive de aprender a me reencontrar. E passei a procurar as respostas e as pistas em todos os lugares, entre todas as pessoas. O que faz a todos prosseguir, não sucumbir? - eu invariavelmente me pergunto. De onde vêm a força e o carisma de mitos como JK, John Lennon, Rita Lee, Madonna, Tom Jobim, Elis, Luther King, da minha grande amiga Sílvia, da Jacinara (professora de História do colégio), da dona Neusa (a merendeira do Athias que entregou a geladeira para o pastor), da catadora de papel que me pediu "um pedaço de pano qualquer" para apaziguar o frio da filha mais nova de uma penca de cinco que ela carrega, todas as madrugadas, pelas ruas do meu bairro, o Bela Vista?

Pois foi no Vermêi que eu encontrei - na verdade ouvi - a resposta. Ela estava ali, sentada em uma ladeirinha do Jônathas Athias, não traduzida. Poderia ter saído das páginas de Machado, de Alencar, de um poema de Augusto dos Anjos. Seu efeito foi cortante, certeiro, com todas as letras, numa única frase dita sem rodeios. Ali, diante de mim, se traduziu em sujeito e predicado e em bom português, nas palavras de uma pessoa profundamente querida, o enigma:

- ESTOU MUITO SATISFEITO COM O QUE SOU PARA TER QUE AGRADAR QUEM QUER QUE SEJA.

É verdade: JK, John Lennon, Rita Lee, Madonna, Tom Jobim, Elis, Luther King, Sílvia, Jacinara, dona Neusa, a catadora de papel não me parecem ter vindo ou estar aqui para agradar.

Eis o caminho do reencontro. Vou no Vermêi ao som de "As curvas da estrada de Santos".

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